quarta-feira, 29 de abril de 2015

Horas iguais

Ela acordou, ou perdeu o sono. Ultimamente ela não sabe diferenciar. Ela se levantou, as pernas um pouco mais finas, as linhas da costelas salientes. O cabelo bagunçado em um coque, os olhos envoltos por anéis escuros. O café da manhã foi um cigarro de menta.
Ela saboreava a fumaça, observando o seu reflexo misturado com os carros no vidro da janela do seu apartamento. Era manhã, não sabia que horas eram, só sabia que o tempo não passava. O dia tinha uma linha de luz solar, repleto por nuvens cinzas. Seus dias eram cinzas há tempos, não se fazia necessárias as nuvens.
O cigarro acabou, ela jogou o toco num cinzeiro cheio deles, espreguiçou-se, parou por alguns instantes e resolveu abrir a janela. A pele branca logo se arrepiou, o vento matinal da cidade grande a atingiu bruscamente. Logo, seu apartamento empoeirado contava também com a fuligem dos escapamentos dos carros. Ela colocou a cabeça para fora da janela e olhou o asfalto lá em baixo. Se perguntou quantas pessoas já tentaram voar de onde ela estava.

Voltou-se para cama e viu um livro aberto, em meio aos lençóis. A página aberta falava sobre se valorizar, seguir em frente. Ela, sem muita paciência, jogou o livro pela janela. Do alto, ouviu uma buzina, mas não soube dizer se era por causa do livro ou não.
A cozinha estava suja. Pratos, copos, talheres, canecas, tudo. Ela se encostou na porta e começou a observar aquela pilha de louças, repleta de moscas. Comparou a pia suja com sua vida. Suja, cada vez mais, sendo amparada somente pelas moscas. Abriu a geladeira e bebeu o restante do leite do mês passado, e o gosto azedo não fazia diferença.
Encontrou o celular no meio do sofá, entre algumas embalagens de salgadinhos. A bateria estava quase no fim, e as mensagens eram muitas. Ela não quis responder nenhuma, mas leu todas. Estavam sentindo falta dela no trabalho, na faculdade, no barzinho, em casa. Ela sabia que estava lendo porque queria encontrar uma mensagem que não encontraria.
Ela voltou para o quarto e abraçou o travesseiro. Ligou o rádio para que pudesse ouvir pelo menos a estática, assim o apartamento não ficaria tão solitário. Os ruídos pareciam vozes, e ela conversava com eles. Contava de sua vida, e de como ela não a vivia. Contou dos livros que leu e dos amigos que a tentaram levar para a Igreja. Contou de como os dentes brancos ficaram amarelos e de como os olhos claros foram ofuscados pelo escuro das olheiras. Ela ria, mas quando percebeu o que estava fazendo, chorou. O travesseiro abafava seus gemidos e ficava cada vez mais molhado.
A estática continuou até se sintonizar em uma rádio qualquer. A música não importava, mas a fez lembrar dos dias caminhando nas estradas de terra. Era verão, mas eles não ligavam para o calor. Ela andava na frente e falava alto, ele atrás ouvia e ria das vontades e contos dela. Ela gostava da paisagem verde e amarelo-seco que aquela estrada tinha. Ele adorava fotografá-la. No travesseiro, ela se perguntava se ele podia sentir que ela estava pensando nele.
Não, ele não está, disse o rádio novamente entrando em estática. Ela tomou a decisão: não tinha mais motivos para continuar vivendo. Assim como a pia cheia de louças sujas, ela era apenas um atrativo para moscas e doenças, algo que ninguém queria perto.
Se levantou, limpando as lágrimas secas, e seguiu para a janela aberta. O dia já estava a mil. Ela olhou para o asfalto novamente e pensou sobre a dor que ia sentir. Cogitando essa possibilidade, ela chegou a conclusão que qualquer dor não seria ruim como a que ela estava sentindo: a dor do vazio. Colou o pé para fora.
Sentou-se.
Olhou novamente para dentro do quarto. Estava escuro, mas havia uma coisa que brilhava. Uma luz verde. Algarismos. Iguais.
Ela se lembrou de uma manhã, em que ela ria dele, porque ele havia anotado uma lista de horas iguais no celular.
“É sério isso?” “É!” “Nossa” “Já aconteceu comigo, eu acredito!”
O relógio marcava 08h08. Ela sorriu. Voltou para dentro do quarto. Foi para o banheiro e tomou um banho quente. Depois de um tempo, saiu com a toalha na cabeça, ainda sorrindo, agora com os dentes escovados. Procurou uma roupa bonita, em meio a bagunça. Passou uma maquiagem nos olhos e um batom na boca. Não era a sua melhor aparência, mas ela estava linda.
Pegou os livros da faculdade e correu para pegar o trem das 10, feliz, com um sorriso que não seria efêmero.

“Hoje uma pessoa pensou em você.” Ela ria de novo, sem graça, sentada, olhando aquele lado da cidade que há semanas não via. 

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